'Cuba é um caso excepcional no mundo': Emily Morris, especialista na ilha, fala ao Trocando Ideia

Cuba: avanços sociais, embargo e um regime de 50 anos num só lugar
Por Pedro Muxfeldt

Em muitas ocasiões, discussões políticas se tornam embates em que cada um defende seu lado cegamente. No debate sobre Cuba, essa característica tende a se exacerbar. Há quem enxergue a ilha como uma prisão onde todos os habitantes sonham e tentam fugir das mãos cruéis dos irmãos Castro e seu regime com mais de 50 anos e há aqueles que exaltam a saúde e educação de primeiro mundo do país e fecha o olho para as dificuldades e contradições da única nação da América Latina onde uma revolução de esquerda triunfou.

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A economista inglesa Emily Morris, especialista em Cuba e América Central há mais de 20 anos, tem sido uma das vozes que tentam escapar dessa lógica e analisar o país em todas as suas nuances, avanços e problemas.

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Autora de artigo recém-publicado na revista New Left Review sobre a possibilidade que Cuba abre de construção de uma economia socialista, ela falou ao Trocando Ideia sobre as reformas econômicas de Raul Castro, o embargo norte-americano e revelou qual é a maior lição que a ilha tem a dar ao mundo.

Quais as principais ações previstas no plano de reforma econômica do presidente Raul Castro? E quais os maiores desafios enfrentados?

Em muitos sentidos, o programa de atualização econômica de Raul continua um processo já em curso. Medidas como a formação de um novo setor privado, participação de investidores estrangeiros, racionalização da administração pública e abertura de mercados livres para produtos agrícolas foram introduzidas antes dele ser presidente. Mas o processo ainda é muito cuidadoso, o que não surpreende considerando as condições desafiadoras em que o governo cubano opera. Como Estado unipartidário, sua sobrevivência depende da construção de consenso e há a hostilidade dos Estados Unidos, que significa severas restrições a oportunidades econômicas, além disso o governo se comprometeu em manter a proteção social e saúde e educação universalizados o que obriga as reformas a serem feitas de maneira a manter a capacidade estatal em proteger a população vulnerável.

Contudo, Raul aprofundou o processo. Rapidamente acelerou a distribuição de terras agricultáveis para fazendeiros privados, racionalizou o setor público e expandiu o privado, mas reformas de longo alcance tem que ser precedidas por extensa consulta popular em Cuba. Em 2011, foram aprovadas orientações para a reestruturação até 2016 e há agora um processo sistemático de implementação. Porém, o documento não constitui um programa fechado, pois este está sendo desenvolvido conforme o método cubano: as reformas são estudadas, testadas, revistas e ajustadas antes da completa implementação.

As iniciativas de Raul incluíram reformas - por exemplo, tributária, trabalhista e nas leis do mercado imobiliário e de investimento estrangeiro - e, principalmente, mudanças institucionais. A racionalização do setor público removeu a estabilidade do emprego; no setor financeiro, novos instrumentos de crédito estão sendo desenvolvidos. Embora o controle do Estado sobre a maioria dos meios de produção persista, o sistema econômico não é mais planificado centralmente. O Estado é muito maior do que em economias capitalistas, mas Cuba tem uma economista mista atualmente.


Drª Emily Morris (Fonte: University College of London)
Em seu recente artigo para a New Left Review, você defende que Cuba mostra que uma economia socialista é possível. Este modelo pode se desenvolver em outros países ou Cuba é uma experiência excepcional?

No artigo, argumentei que a sobrevivência inesperada e a relativamente boa performance da economia cubana sugere que uma economia socialista pode ser possível. Cuba ainda está longe de ter uma posição forte. Além disso, o país é um caso excepcional no mundo e não é um modelo que possa replicado. Defendo que a força da resposta cubana à crise e seus ajustes - em comparação às expectativas - vem do fato de não ser cópia de nenhum outro país e que ele respondeu às circunstâncias específicas daquele país, naquele momento, de acordo com suas instituições, cultura e tradições assim como os recursos disponíveis, estrutura econômica e restrições externas.

Nesse sentido, a única lição que o caso cubano pode deixar é que soluções caseiras podem ser mais apropriadas que modelos emprestados de outros países. São elementos-chave em Cuba a capacidade de construção de consensos e os esforços continuados na tentativa de combater a corrupção. Esta tem sido uma tarefa difícil pelas circunstâncias e a batalha ainda não está ganha, mas o esforço é crucial.

Cuba tem desenvolvido muitas ações anticorrupção nos últimos anos. Como elas funcionam?

Cuba tem um sério problema de corrupção devido em parte à crise e em parte aos esforços governamentais em controlar a atividade econômica. Com o passar do tempo, as autoridades cubanas aprenderam a importância de enfrentar o problema. Isto resultou nas reformas econômicas e no papel crescente das auditorias. A comissão nacional de auditoria primeiro tornou-se um ministério e ganhou peso ainda maior com a criação da Controladoria-Geral. A pessoa que ocupa este posto, Gladys Bejerano, é uma das figuras mais importantes da economia cubana, ainda que receba pouco atenção fora do país.

Ela tem os recursos necessários para monitorar e investigar cada canto da economia. Gladys trabalha próxima a outros ministérios, mas, essencialmente, acima de todos eles. Junto a isso, as autoridades instituíram e fortaleceram sistemas de controle. Grandes problemas foram detectados e diretores de empresas e membros do governo, assim como homens de negócio estrangeiros, foram sentenciados a longas penas de prisão. Isto mostra o comprometimento em focar ações sobre o alto escalão, o que é positivo. Entre o povo, a tentação de fazer algo 'por fora' é grande devido ao tamanho da economia informal, que é produto do controle de preços e outras restrições. Mas a batalha principal é prevenir a corrupção nos órgãos públicos.

Qual sua opinião sobre o embargo imposto pelos Estados Unidos?

Restringir o comércio, ainda mais por questões políticas, é sempre danoso economicamente. O embargo norte-americano é uma relíquia de uma era passada. Sua continuação é contraproducente do ponto de vista dos Estados Unidos, pois não enfraquece o governo cubano e mina o status internacional do país e é altamente custoso para Cuba em termos de crescimento econômico e qualidade de vida. Uma Cuba mais próspera poderia beneficiar toda a América Central.

Você acredita que Obama ou seu sucessor irão pôr fim ao embargo?

Entendo que o assunto é muito delicado nos Estados Unidos. Cuba não é uma prioridade para Obama no momento e se ele irritar o lobby pró-embargo pode ter que pagar um alto preço em áreas políticas mais importantes. Portanto, a resposta para a questão repousa na política doméstica dos EUA. Apenas uma minoria da população acredita que o embargo possua alguma utilidade - sua função principal parece ser alguma forma de punição a Cuba -, mas isso não significa que ele pode ser abandonado facilmente. Obama não deve gostar do embargo, mas há muitas razões para ele hesitar em agir.

A resposta é que não sei. Há alguns elementos do embargo que requerem participação do Congresso, mas outros estão sob controle do presidente. Para mim, o movimento mais fácil seria remover Cuba da lista de 'estados patrocinadores do terrorismo', algo sem base especialmente com a mediação de Cuba, ao lado da Noruega, das negociações de paz entre o governo da Colômbia e as Farc. Tirar o país da lista não significaria nada para os EUA, mas faria uma grande diferença para Cuba, que teria o comércio com outros países facilitado. No momento, a presença cubana na lista significa que os EUA podem processar terceiros países que troquem com Cuba. Isso é um desperdício dos esforços antiterror e causa danos à economia cubana.


Irmãos, Fidel e Raul comandam a ilha desde 1959
Por que a imprensa internacional se engaja na campanha anti-Cuba?

Não acredito que seja a imprensa internacional como um todo. Muitas pessoas não conhecem ou não ligam para o que acontece em Cuba. Mas é evidente que os inimigos mais viscerais do governo cubano possuem uma operação de relações públicas muito efetiva e ela é bem sucedida em criar uma impressão distorcida da realidade cubana. Parte dos informes pró-Cuba também são distorcidos, mas não têm um alcance tão grande. Meu trabalho visa a levar mais nuances para a discussão e revelar a complexidade da realidade cubana.

E qual o futuro da economia cubana?

O futuro é muito incerto. O processo de atulização econômica possui momentos difíceis no horizonte. Um risco em particular, por representar a chance de um choque, é o processo de unificação da moeda e o realinhamento de preços e salários que virão acoplados. No longo prazo, a questão central é a habilidade do governo em manter a rede de seguridade social. Uma grande preocupação são os aposentados. Esta geração não está em posição de se beneficiar do surgimento de novas formas empresariais e, com o rápido envelhecimento da população, o governo cubano precisa garantir receitas suficientes para dar um padrão de vida decente aos aposentados.

Minha previsão, baseado em como o modelo cubano funciona, é que Cuba vai trabalhar para evitar uma crise devastadora, mas o processo de ajuste será longo e difícil. Como sempre, ele será pontuado por momentos de tensão econômica. Como você sugeriu, o que pode fazer tudo se tornar mais fácil economicamente (e também politicamente) é o fim das sanções norte-americanas.

O que o Brasil e os Brics podem representar para a economia cubana nos próximos anos?

Cuba já cultiva ligações com os Brics e parece que as relações comerciais vão aumentar. Em sua história, Cuba sofreu diversas vezes pela por depender de um único parceiro econômico e parece que um dos objetivos de Raul é diversificar as relações o máximo possível. Atualmente, a dependência da Venezuela está preocupantemente alta, o que explica em parte a intensa procura por parceiros alternativos. Há muito potencial nas relações futuras entre Cuba e Brasil e com os outros Brics.

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