Em muitas ocasiões, discussões políticas se tornam embates em que cada um defende seu lado cegamente. No debate sobre Cuba, essa característica tende a se exacerbar. Há quem enxergue a ilha como uma prisão onde todos os habitantes sonham e tentam fugir das mãos cruéis dos irmãos Castro e seu regime com mais de 50 anos e há aqueles que exaltam a saúde e educação de primeiro mundo do país e fecha o olho para as dificuldades e contradições da única nação da América Latina onde uma revolução de esquerda triunfou.
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A economista inglesa Emily Morris, especialista em Cuba e América Central há mais de 20 anos, tem sido uma das vozes que tentam escapar dessa lógica e analisar o país em todas as suas nuances, avanços e problemas.
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Autora de artigo recém-publicado na revista New Left Review sobre a possibilidade que Cuba abre de construção de uma economia socialista, ela falou ao Trocando Ideia sobre as reformas econômicas de Raul Castro, o embargo norte-americano e revelou qual é a maior lição que a ilha tem a dar ao mundo.
Quais as principais ações previstas no plano de reforma econômica do presidente Raul Castro? E quais os maiores desafios enfrentados?
Em muitos sentidos, o programa de atualização econômica de Raul continua um processo já em curso. Medidas como a formação de um novo setor privado, participação de investidores estrangeiros, racionalização da administração pública e abertura de mercados livres para produtos agrícolas foram introduzidas antes dele ser presidente. Mas o processo ainda é muito cuidadoso, o que não surpreende considerando as condições desafiadoras em que o governo cubano opera. Como Estado unipartidário, sua sobrevivência depende da construção de consenso e há a hostilidade dos Estados Unidos, que significa severas restrições a oportunidades econômicas, além disso o governo se comprometeu em manter a proteção social e saúde e educação universalizados o que obriga as reformas a serem feitas de maneira a manter a capacidade estatal em proteger a população vulnerável.
Contudo, Raul aprofundou o processo. Rapidamente acelerou a distribuição de terras agricultáveis para fazendeiros privados, racionalizou o setor público e expandiu o privado, mas reformas de longo alcance tem que ser precedidas por extensa consulta popular em Cuba. Em 2011, foram aprovadas orientações para a reestruturação até 2016 e há agora um processo sistemático de implementação. Porém, o documento não constitui um programa fechado, pois este está sendo desenvolvido conforme o método cubano: as reformas são estudadas, testadas, revistas e ajustadas antes da completa implementação.
As iniciativas de Raul incluíram reformas - por exemplo, tributária, trabalhista e nas leis do mercado imobiliário e de investimento estrangeiro - e, principalmente, mudanças institucionais. A racionalização do setor público removeu a estabilidade do emprego; no setor financeiro, novos instrumentos de crédito estão sendo desenvolvidos. Embora o controle do Estado sobre a maioria dos meios de produção persista, o sistema econômico não é mais planificado centralmente. O Estado é muito maior do que em economias capitalistas, mas Cuba tem uma economista mista atualmente.
Em seu recente artigo para a New Left Review, você defende que Cuba mostra que uma economia socialista é possível. Este modelo pode se desenvolver em outros países ou Cuba é uma experiência excepcional?
Drª Emily Morris (Fonte: University College of London) |
No artigo, argumentei que a sobrevivência inesperada e a relativamente boa performance da economia cubana sugere que uma economia socialista pode ser possível. Cuba ainda está longe de ter uma posição forte. Além disso, o país é um caso excepcional no mundo e não é um modelo que possa replicado. Defendo que a força da resposta cubana à crise e seus ajustes - em comparação às expectativas - vem do fato de não ser cópia de nenhum outro país e que ele respondeu às circunstâncias específicas daquele país, naquele momento, de acordo com suas instituições, cultura e tradições assim como os recursos disponíveis, estrutura econômica e restrições externas.
Nesse sentido, a única lição que o caso cubano pode deixar é que soluções caseiras podem ser mais apropriadas que modelos emprestados de outros países. São elementos-chave em Cuba a capacidade de construção de consensos e os esforços continuados na tentativa de combater a corrupção. Esta tem sido uma tarefa difícil pelas circunstâncias e a batalha ainda não está ganha, mas o esforço é crucial.
Cuba tem desenvolvido muitas ações anticorrupção nos últimos anos. Como elas funcionam?
Cuba tem um sério problema de corrupção devido em parte à crise e em parte aos esforços governamentais em controlar a atividade econômica. Com o passar do tempo, as autoridades cubanas aprenderam a importância de enfrentar o problema. Isto resultou nas reformas econômicas e no papel crescente das auditorias. A comissão nacional de auditoria primeiro tornou-se um ministério e ganhou peso ainda maior com a criação da Controladoria-Geral. A pessoa que ocupa este posto, Gladys Bejerano, é uma das figuras mais importantes da economia cubana, ainda que receba pouco atenção fora do país.
Ela tem os recursos necessários para monitorar e investigar cada canto da economia. Gladys trabalha próxima a outros ministérios, mas, essencialmente, acima de todos eles. Junto a isso, as autoridades instituíram e fortaleceram sistemas de controle. Grandes problemas foram detectados e diretores de empresas e membros do governo, assim como homens de negócio estrangeiros, foram sentenciados a longas penas de prisão. Isto mostra o comprometimento em focar ações sobre o alto escalão, o que é positivo. Entre o povo, a tentação de fazer algo 'por fora' é grande devido ao tamanho da economia informal, que é produto do controle de preços e outras restrições. Mas a batalha principal é prevenir a corrupção nos órgãos públicos.
Qual sua opinião sobre o embargo imposto pelos Estados Unidos?
Restringir o comércio, ainda mais por questões políticas, é sempre danoso economicamente. O embargo norte-americano é uma relíquia de uma era passada. Sua continuação é contraproducente do ponto de vista dos Estados Unidos, pois não enfraquece o governo cubano e mina o status internacional do país e é altamente custoso para Cuba em termos de crescimento econômico e qualidade de vida. Uma Cuba mais próspera poderia beneficiar toda a América Central.
Você acredita que Obama ou seu sucessor irão pôr fim ao embargo?
Entendo que o assunto é muito delicado nos Estados Unidos. Cuba não é uma prioridade para Obama no momento e se ele irritar o lobby pró-embargo pode ter que pagar um alto preço em áreas políticas mais importantes. Portanto, a resposta para a questão repousa na política doméstica dos EUA. Apenas uma minoria da população acredita que o embargo possua alguma utilidade - sua função principal parece ser alguma forma de punição a Cuba -, mas isso não significa que ele pode ser abandonado facilmente. Obama não deve gostar do embargo, mas há muitas razões para ele hesitar em agir.
A resposta é que não sei. Há alguns elementos do embargo que requerem participação do Congresso, mas outros estão sob controle do presidente. Para mim, o movimento mais fácil seria remover Cuba da lista de 'estados patrocinadores do terrorismo', algo sem base especialmente com a mediação de Cuba, ao lado da Noruega, das negociações de paz entre o governo da Colômbia e as Farc. Tirar o país da lista não significaria nada para os EUA, mas faria uma grande diferença para Cuba, que teria o comércio com outros países facilitado. No momento, a presença cubana na lista significa que os EUA podem processar terceiros países que troquem com Cuba. Isso é um desperdício dos esforços antiterror e causa danos à economia cubana.
Por que a imprensa internacional se engaja na campanha anti-Cuba?
Irmãos, Fidel e Raul comandam a ilha desde 1959 |
Não acredito que seja a imprensa internacional como um todo. Muitas pessoas não conhecem ou não ligam para o que acontece em Cuba. Mas é evidente que os inimigos mais viscerais do governo cubano possuem uma operação de relações públicas muito efetiva e ela é bem sucedida em criar uma impressão distorcida da realidade cubana. Parte dos informes pró-Cuba também são distorcidos, mas não têm um alcance tão grande. Meu trabalho visa a levar mais nuances para a discussão e revelar a complexidade da realidade cubana.
E qual o futuro da economia cubana?
O futuro é muito incerto. O processo de atulização econômica possui momentos difíceis no horizonte. Um risco em particular, por representar a chance de um choque, é o processo de unificação da moeda e o realinhamento de preços e salários que virão acoplados. No longo prazo, a questão central é a habilidade do governo em manter a rede de seguridade social. Uma grande preocupação são os aposentados. Esta geração não está em posição de se beneficiar do surgimento de novas formas empresariais e, com o rápido envelhecimento da população, o governo cubano precisa garantir receitas suficientes para dar um padrão de vida decente aos aposentados.
Minha previsão, baseado em como o modelo cubano funciona, é que Cuba vai trabalhar para evitar uma crise devastadora, mas o processo de ajuste será longo e difícil. Como sempre, ele será pontuado por momentos de tensão econômica. Como você sugeriu, o que pode fazer tudo se tornar mais fácil economicamente (e também politicamente) é o fim das sanções norte-americanas.
O que o Brasil e os Brics podem representar para a economia cubana nos próximos anos?
Cuba já cultiva ligações com os Brics e parece que as relações comerciais vão aumentar. Em sua história, Cuba sofreu diversas vezes pela por depender de um único parceiro econômico e parece que um dos objetivos de Raul é diversificar as relações o máximo possível. Atualmente, a dependência da Venezuela está preocupantemente alta, o que explica em parte a intensa procura por parceiros alternativos. Há muito potencial nas relações futuras entre Cuba e Brasil e com os outros Brics.
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